QUE FAZER: TEORIA E PRÁTICA EM EDUCAÇÃO POPULAR

Autores

  • William Rossani dos Santos Universidade Estadual de Campinas

Resumo

O livro Que Fazer: teoria e prática em Educação Popular, de autoria de Paulo Freire e Adriano Nogueira, apresenta a origem, os princípios e os pilares da Educação Popular que emergiu frente às lutas dos Movimentos Populares a partir da década de 1960. A obra se constitui em sete capítulos, incluindo a introdução, acrescidos de dois anexos — nos quais os autores elucidam a emergência de um pensamento sobre a educação popular e o funcionamento do movimento popular como escola de educação popular. Por meio de um diálogo, os dois autores desdobram pouco a pouco a proposta e as potencialidades da Educação Popular, reiterando que não se trata de um livro acabado, antes disso, o consideram como um livro inconcluso, porque crítico e reflexivo. Elucidam que não se trata de palavras de comando, mas antes uma reflexão sobre a educação, que não deve ser entendida pura e essencialmente como transmissão-recepção e sim como uma prática de liberdade no mundo, que se dá na luta diária, nos enfrentamentos e nas dificuldades da realidade de uma sociedade que é dividida em classes. Na Introdução da obra, Freire e Adriano se questionam sobre o surgimento da Educação Popular e sobre o problema de “Por que foi necessário brotar uma concepção de educação que seria reconhecida como ‘educação popular’?”. Freire responde a Adriano que esta se trata de uma dimensão popular que veio integrar o pensamento pedagógico. Destaca que a emersão deste tipo de educação se deu, em específico, em meio às políticas populistas brasileiras, em que os movimentos populares e o estilo de fazer política das massas brotaram com mais efervescência. Isto é, em um contexto de politização dos movimentos de classes populares. O educador ainda indica que o surgimento deste tipo de educação se deu frente a necessidade de formação da massa de imigrantes visando sua integração no processo de modernização brasileira. Via-se também a demanda por uma educação dos adultos mais profunda, uma vez que a escola era insuficiente para esta sozinha cumprir esta tarefa. Era um tipo de educação que necessitava da participação dos populares para a transformação da sociedade. No primeiro capítulo, intitulado “Definição” Primeira: o que é Educação Popular?, os autores definem Educação Popular como “o esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares; capacitação científica e técnica.” (FREIRE; NOGUEIRA, 1993, p. 19). O primeiro postulado, então, é a grande vinculação entre educação e vida política, no limite: a educação como prática política. Freire reflete sobre o tipo diferenciado do saber popular que se constitui em saber-fazer em contraponto do saber sistematizado escolar. De acordo com o educador, o conhecimento do mundo das classes populares é feito a partir das práticas do mundo. Tal conhecimento é experimentado, se dando na prática, na luta cotidiana. Entretanto, quando esta prática é posta em discussão pela comunidade, na organização popular, ela ganha um outro nível de inteligibilidade: uma inteligibilidade que resolve as necessidades populares. E deste “clareamento” surge a resistência coletiva, que são estratégias contra formas cotidianas de opressões. Os autores também indagam sobre como organizar o saber popular em um programa de ações populares, e encontram essa resposta na proposição dos programas de ação popular como procedimento de apreensão/captura da vida, que provém de um conhecimento pela via do corpo. No segundo capítulo, Organizar o saber, planejar a luta, os autores continuam a problematização iniciada ao afirmar que a luta popular se fundamenta em um conhecimento mais organizado, isto porque o saber popular não se dá em pacotes. Essa sistematização, no entanto, ocorre espontaneamente por meio da resistência e da luta. Trata-se de uma prática cognitiva por meio dos corpos. Há um trabalho metódico na sistematização do fazer popular, o que constitui um fator positivo. Por outro lado, há o perigo deste saber ser colonizado pela transposição dos intelectuais da classe média. Em outra reflexão, os autores discutem que a tradição popular é mais oral do que escrita, diferente da abordagem do intelectual que trabalha com conceitos abstratos. No entanto, como esclarecem: os toques, os afetos corporificados também são procederes epistemológicos. Por fim, Freire e Nogueira comentam que esta obra, da qual ambos são autores, é uma obra inacabada, visto não ter respostas últimas, por ser somente um suporte para o leitor pense para além dela, se confrontando a partir de suas próprias experiências. No terceiro capítulo O texto escrito reaproxima o leitor de sua própria vida, os autores continuam a discussão de que há uma relação entre o fazer do corpo e o conhecimento. A utilidade social de um texto crítico, afirma Adriano, está na possibilidade de proposição de ações que melhorem o jeito de viver, as práticas sociais. A mão, o manuseio, o corpo humano como um todo se transforma em um corpo consciente, porque é um corpo cultural que cria, age, estabelece relações. Adriano pontua três características da cientificidade: a curiosidade crítica, as diversas maneiras de captar e produzir conhecimento, e o uso da linguagem na relação com o mundo; e Freire conclui, a partir destas características sobre a importância da não fragmentação entre prática e teoria, ato e saber, uma vez que a ausência de um ocasiona a assimetria no outro. Em seguida, no capítulo O conhecimento gerado na reflexão da favela e o conhecimento gerado nessa nossa reflexão, Freire e Adriano problematizam sobre a forma do intelectual em conhecer a realidade dos grupos populares. Para Freire, o intelectual que não compreende o fazer e o conhecer dos populares é um intelectual que não sabe aprender, porque apenas emite e informa, sem politizar, visto que os conteúdos para estas pessoas são vestidos de problemas que precisam de uma solução. A prática pelos populares é tomada como curiosidade, daí que abre possibilidades de intervenção. Os autores pontuam que há o perigo em se postular uma “ingenuidade” popular sem deixar de conhecer as estratégias de resistência deste grupo. Uma dose de anarquia, esclarece os educadores, precede e acompanha a organização revolucionária. Neste sentido, toda essa organização popular é proveniente de uma utopia coletiva que se concretiza na prática cotidiana e na tomada de consciência dos populares. Em Conversando com outro tipo de leitor(a): o(a) profissional educador(a), os autores trazem para discussão os professores que atuam para as crianças populares e a favor destas. São profissionais que enxergam os interesses desta cultura cuja identidade é quase sempre negada pela cultura oficial da escola. Ademais, há uma diferença entre a vida dos/das professores/as e dos alunos. E a partir do questionamento do/da professor/a do que ele/ela pode fazer por este aluno é que vai ficando clara a natureza política da profissão docente. Este/a profissional vai encontrar sua própria opção, e vai clareando as diferentes experiências de vidas culturais entre alunos de classes sociais distintas. Segundo Freire, a clareza que professor aos poucos vai tendo lhe traz a percepção cada vez mais transparente de que ele/ela não é um salvacionista da humanidade, mas antes, dos indivíduos que o cercam, e dos que mais necessitam. Há o descobrimento da escola enquanto um lugar de opções políticas. A partir daí, este/a profissional passa a atuar com uma “opcionada” competência, e com valentia na luta a favor dos educandos das classes populares. Essas opções dos professores/as os levam a fazer um trabalho sério, competente e contente, porque satisfatório. Além disso, comentam os autores, a profissão docente é solidária, na medida em que depende de outras pessoas para se efetivar. Neste sentido, com a solidariedade de parcerias é possível a superação, não individual, mas coletiva das limitações (pobreza e carência), o que culmina em uma superação solidária. Por fim, no sexto capítulo, Nossa postura crítica e a instituição onde atuamos, tem-se a discussão sobre a não neutralidade das instituições ao entendê-las como entidades concebidas por objetivos específicos e por terem sido idealizadas por uma pessoa ou um grupo de pessoas, fazendo com que aos poucos as atuações institucionais cristalizem as intenções em regras administrativas. “As normas”, dizem os autores, “pautam atitudes e condicionam os relacionamentos humanos”. Deste modo, urge se questionar: quem foi o responsável da produção destas normas? A quem elas servem? Embora reconheçam o poder normativo das instituições sociais, ambos os autores reconhecem que o profissional que nesta instituição atua é mais amplo que os horizontes da instituição, exatamente porque contém em si o gérmen da transformação e não da adaptação. Com isso, ele se torna mais crítico do que os mecanismos que a predispõe. Para Freire, sem se neurotizar com as regras da instituição, este profissional vai incomodar a normalidade das burocracias rotineiras; vai redimensionar os limites e os alcances da instituição a partir de seu posicionamento e de suas opções. É esta a potencialidade do profissional opcionado. A obra ainda apresenta dois anexos complementando a argumentação dos educadores. No primeiro anexo, intitulado Educação Popular: Pequena parte de uma grande história, Freire esclarece que foi pela emergência de um pensamento sobre a Educação Popular que pôde aparecer conceitos como os de “educação bancária” e “Cultura Popular”, que contribuía na reflexão da função domesticadora da educação. A Cultura Popular, por exemplo, foi uma atuação que visava reverter a educação que negava e excluía os saberes populares. Buscava-se reinventar a escola, substituindo o arcaico esquema educação-evasão-exclusão por outro modelo mais democrático e inclusivo. Freire e Nogueira comentam que o passou a se chamar “educação de adultos” foi decorrente destas ações culturais que visavam expandir e tornar legítimo uma educação que não descuidasse da cultura popular. Com efeito, a educação popular buscava articular teoria e prática, tanto na relação entre o mundo do trabalho como no mundo dos pensamentos escritos, se efetivando em uma educação conscientizadora. Em todo caso, houve um redimensionamento do que pode ser entendido por Cultura. No segundo anexo, Uma Visão Pedagógica da Cultura: o movimento popular como escola de educação popular, Freire nos mostra que o Movimento Popular tem funcionado como uma escola viva, isto é, território em que as pessoas se educam a si mesmas e aos outros. O educador ainda destaca um ponto importante: se desvincular da noção de educação enquanto um ato de ensinar como transmitir, e aprender como um processo de recepção, e explicita que a educação, como a exercida pelo Movimento Popular, deve ser vista como uma ação de resolução dos problemas e das dificuldades da vida: a educação como transformação da realidade, melhorando as condições de vida dos indivíduos. Nas palavras do autor: “Através da Educação Popular as pessoas do bairro ou da favela aprendem a transformar suas dificuldades em melhor viver” (ibid., p. 66). Ademais, é por meio deste tipo de educação que as pessoas apreendem o mundo e problematizam a história na qual estão inseridas e os acontecimentos que os marcam. Em suma, os autores apresentam que o corpo do Movimento Popular em si é uma escola, pois o conhecimento teórico e prático da sociedade e da vida está imerso inteiramente em suas “entranhas”. Este conhecimento surge da prática, pois é no mundo dos homens que a luta se dá. A compreensão que se revela dessa luta vai se clareando e demandando a conscientização da realidade. Daí que os autores trabalham com o conceito de prática cognitiva dos corpos: um conhecimento que se dá pela via do corpo. O livro é relevante, pois traz à tona a legitimidade da cultura popular, tão negada na instituição formal de educação. Negação que leva à exclusão, mas que também é resultado de uma resistência cultural por parte dos grupos populares. Essa resistência está pautada no próprio fazer popular e na necessidade destes grupos em saírem da precariedade em que vivem, bem como na reação contra as desigualdades postas. Trata-se de uma postura não fatalista, mas de enfrentamento direto no mundo e com o mundo. No caso específico da educação de jovens e adultos, tais princípios por parte do professor devem ser considerados, pois dizem respeito a um grupo de indivíduos marcados por um lugar social específico: pela condição de “não-crianças”, pela condição de excluídos da escola e pela condição de serem membros de determinados grupos culturais. Este lugar imprime significações sociais negativas que devem ser superadas mediante a atitude opcionada dos profissionais da educação a favor dos excluídos da sociedade. Como Freire salienta nesta obra: nenhum professor está a serviço da humanidade, mas a serviço do Joãozinho e da Mariazinha. Em outras palavras, sua opção política define o viável para a transformação de vidas diretamente. Esta atitude opcionada vai transformando a prática docente mais competente, mais séria e mais satisfatória, porque é molhada pela prática revolucionária. As mazelas da educação de jovens e adultos, provocadas pela nova modalidade de exclusão educacional, não pode ser vista simplesmente por um olhar de fatalidade. As políticas públicas, os sistemas educacionais e as condições socioeconômicas dos estudantes influenciam em sua trajetória escolar, no entanto, o professor tem papel crucial no estabelecimento de ações que vão de encontro às barreiras institucionais. A competência profissional que faz aflorar a sadia insanidade contra ao que está posto é o primeiro passo para que os direitos negados destes grupos desfavorecidos possam ser reconhecidos e legitimados. Como afirmam os autores, o cinismo não move, o enfrentamento, a resistência e o posicionamento crítico sim. Estamos de acordo com as falas dos autores quando enfatizam que “Trabalhar com a pobreza não é santificar os pobres; trabalhar opcionado pelos marginalizados não é baratear os métodos de trabalho, nem menosprezar a inteligência humana porque está molhada de pobreza e carências” (ibid., p. 52). Pelo contrário, há que se ter um rigor crítico do trabalho com a satisfação das atividades e do conhecimento, como pontua Freire. Cumpre destacar que a educação de jovens e adultos tem como pauta a reparação do legado de desigualdade, exclusão e negação, restaurando os direitos ontológicos e o acesso aos bens comuns da humanidade. O que Freire e Nogueira (1993) trazem com a presente obra são estes postulados, além do reconhecimento histórico do Movimento Popular e a contribuição dos grupos populares para a educação brasileira. Referência: NOGUEIRA, Adriano; FREIRE, Paulo. Que Fazer: teoria e prática em Educação Popular. 4. ed. Petrópolis: Vozes editores, 1993.

Biografia do Autor

William Rossani dos Santos, Universidade Estadual de Campinas

Mestrando em Ensino e História de Ciências da Terra pelo Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas. Graduado em Pedagogia pela Universidade Federal de São Carlos.

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Publicado

11-12-2022